Sunday, February 21, 2010

Serenidade

Ele seria capaz de morrer para voltar, voltar de novo à vida das pessoas ditas "normais", mas ele sabe que não pode. Gostava de morrer, sentir-se a ir e então ser mais um perdido entre a multidão, mas tanto eu que escrevo isto como ele sabemos que tal nunca irá acontecer, a existência dele está há muito perdida. Não lhe é possível viver e por conseguinte também não lhe é possível morrer. Por detrás do cabelo negro que lhe cobre a testa, prestes a tocar-lhe nos óculos está um homem, o mesmo que se esconde por baixo da camada de barba que lhe afeita a cara e dos olhos verdes, demasiado azuis para o tom de pele dele. Estendido, prostrado como um leão derrotado na relva, olha o céu negro da noite calma e tranquila, chega mais uma vez o cigarro à boca no meio de ligeiros vómitos provocados pelo álcool e pela tosse compulsiva que está intimamente ligada a ele. Ao menos se também a foice também pendesse pelo seu pescoço como aquelas estranhas convulsões de ar.

A cabeça não para, demasiado atormentada por fantasmas de vidas passadas. Rodopia. Gira. Encontra-se em divagações que talvez em tempo fizessem sentido, mas que hoje não são mais do que castelos de areia à beira mar, sujeitos ao que o mar lhe reserva. Se ao menos tivesse feito as coisas de forma diferente, se ao menos tivesse encontrado na essência dele a resposta que precisava. Perdido em jardins de minotauros, prestes a ser devorado pela besta carnifícina que todo quer. Tudo foi demasiado. Nisto o a brisa quente de uma noite de Verão acaricia-lhe o rosto, a pele estragada pelo tempo, áspera... Tenta levantar-se, crava as botas na terra, cambaleia, a visão diminui-lhe, as calças dirigem-lhe uma dança que este não consegue acompanhar, faz dele próprio uma corda, ata-a e dá-lhe um nó, a gravidade faz o resto. Mal abre os olhos, mas sente que tem a cabeça pousada em algo duro. Espreita sobre o seu próprio corpo e vê a pequena colina onde estava deitado. Arrasta-se até um banco de jardim, não se senta neste pedaço de ferro retorcido porque a pouca consciência que lhe resta apercebe-se que não o irá conseguir. Encosta-se a este, as pernas estendidas no chão, os braços que se abraçam sobre si mesmo. Tenta encontrar o seu casulo, rasteja para dentro do seu corpo, para o seu inconsciente, tem uma dor forte na cabeça. De facto uma linha rasgava-lhe a cabeça, ensanguentando os seus cabelos, esses mesmos que lhe tapavam os olhos, pingavam agora gotas vermelhas. Talvez o fim estivesse perto. Ouvia algo, um som metálico. Um clarão projectou-se sobre os seus olhos, deixava-o cego, talvez isto fosse mesmo o fim. O clarão, o som metálico e agora, agora... algo lhe tocava. Não, não era o sangue, mexia-se com demasiada delicadeza para ser parte dele, parte de um homem rastejador.

Tinha deixado de haver escuridão, tudo acima dele era claro, ouvia vozes, algo continuava a percorrer-lhe a cara. Era este o som dos anjos, afinal tinha conseguido, da maneira mais estúpida, da forma mais ridícula possível tinha vencido. Crescia nele algo que não sentia desde que se lembrava, antes da rua, das viagens sem regresso, do tempo em que não teria mais que 17 anos, do tempo em que perseguia raparigas, das mais belas que conhecia, antes do cabelo lhe tapar a testa, antes da barba lhe dar aspecto de... de... do que ele era um pedaço de lixo humano. Mas agora não, agora era livre, leve como uma pena, a serenidade que em tempos conhecia, a felicidade. Será possível? Sentia felicidade dentro dele? Sim, agora que batera todos os deuses, todos os protectores agora que se encolhia sobre si mesmo, agora que seria livr.... PUM! Que barulho foi este? O que aconteceu? A dor de cabeça estava de volta, mas mais fraca. Algo molhado á volta dele, mexeu os dedos e sentiu. Sentiu a relva molhada de uma noite sobre ele. Passou essa mesma mão pela cara e uma borboleta voou em direcção ao sol, esse sol que o estava agora a cegar com a claridade. Mas então... levantou a cabeça e viu o camião dos lixeiros a desaparecer nas ruas daquele parque público, o barulho metálico... Mais morto que vivo, aliás, nem uma coisa, nem outra. Um desgraçado. Caminhou até casa, abre o portão duas vezes maior que ele, sobe umas escadas de pedra... não tem chaves, vai pela porta das traseiras... percorre a casa... senta-se na cama... acende o pouco de cigarro que lhe restava que dormitava na mesa cabeceira. Dá um sopro espalhando fumo no ar, tem a sensação de estar a espalhar a sua própria alma no ar... estica o braço e debaixo da cama tira uma garrafa de whisky, bebe demasiado, demasiado rápido, demasiado para queimar o que lhe vai na alma, na cabeça, no corpo... Caí na cama, fecha os olhos e no segundo a seguir adormece. Na mesma mesa cabeceira de onde tirou os cigarros repousa um papel, uma fotografia e um pincel. Papel de óbito espiritual, carta da mulher, ou ex-mulher, comprovativo do tribunal que diz entre as linhas: "Tal como ficou provado em tribunal, no dia tal, do mês tantos, ano 200... a Sra. B. G. F-B. ( ex. Sra. B. G. L. ) ficará com metade dos bens, tal como estabelecido de acordo a lei. Estão neste momento oficialmente divorciados." Facada mortal. A fotografia, fotografia dos pais, ambos tal como ele desejaria estar, enterrado, perdido nas camadas de terra. O pincel óbito, certidão de óbito de ele mesmo, quão mais tempo aguentará assim? A respiração continuava compassada, assusta-se, as pernas chocam com a garrafa de vidro que entorna por todo o chão do quarto, continua tranquilamente a dormir absorto nos seus pesadelos. Que descanse em paz, ele sabe que se não conseguisse dormir já teria enlouquecido. Acredito que haja alguma parte daquele pedaço humano que se encontre ainda vivo, com vontade de assim continuar...

Wednesday, February 17, 2010

Preto e branco, escrita de papel

Foda-se Cristo, Alá, Buda e a equipa toda de deuses, semi-deuses, profetas e comentadores da bola. Inoperância realizavel através da doce busca do prazer venenoso de uma serpente, uma cobra-de-coral, rezemos para que seja uma falsa, senão já estou morto e ainda nem dei por isso. Deus um dia permitiu que viesse ao mundo e disse: "faça-se luz sobre a terra, bem aventurados sejam os homens entre aqueles..." e mais uma série de blasfémias dirigidas contra o próprio. A vida, as vezes, faz-me lembrar a route 66 dos Estados Unidos, ou aqui em Portugal qualquer estrada nacional toda esburacada no meio do Alentejo que acontece ser uma recta enorme. Sim, não considero que a vida tenha curvas, agora que está cheia de buracos está.

Voltei a escrever, não de forma inteligente, porque graças a todos os santos nunca o soube fazer, mas o que me importa é que voltei a escrever.

A barra do rectangulo de texto que me indica onde irá cair a próxima letra paira á minha frente. Aparece e depois desaparece, sempre no mesmo lugar se não lhe tocar. Pouco misterioso, pouco enigmático.

De tempos a tempos perco-me, perco-me em mim mesmo, mestre do destino que se conduz por essa enorme recta alentejana a que chamemos: vida. Já li algures, num desses livros de New Age que estar perdido significar evoluir. Se é verdade ou não... não sei, sei sim que o sentimento é exactamente o mesmo de quando nos perdemos em algum local que não conhecemos, só que desta vez não podemos perguntar ao policia preguiçoso, nem consultar o GPS. Temos mesmo que estar perdidos: engolir em seco, tentar clarificar a mente enquanto nos tentamos recompor de um tornado mental, rodopiar em vortexes mentais e talvez não emocionais.

Há toda uma magia nisto, um tanto ou quanto poética, será permitido armar-me em deus e poetizar toda o cenário mais um pouco? A luz fraca do candeeiro pende sobre a secretária, ou o que resta dela. Um copo de whisky na mão apoiada num dos braços da cadeira, a barba por fazer, um chapeu á cowboy a descair sobre o cabelo sujo e escuro, parece até que desliza, que pode cair-lhe da cabeça a qualquer momento. No canto da boca um charro de erva, as botas texanas impecavelmente sujas e desfeitas, as calças parecem-se com um trapo que rebolou em terra durante dias, a máquina de escrever no colo e no cabeçalho apenas "Para ti querida...", - presumo que me antecipei, deveria de ter deixado o sujeito escrever o nome da sua querida -, na mesinha ao seu lado, linhas branca e castanhas dançavam sobre o vidro, limão, colher, isqueiro, uma seringa a beijar o braço, o olhar gazeado, a boca entreaberta e espumosa, a cabeça a pender para a frente sem vida como... como se fosse cair que nem um martelo sobre a máquina de escrever.

Poetização do imaginário de um perdido que se encontra no meio de outros perdidos, mas pensam andar no caminho, não porra! Um perdido, poeta de imaginários, que se tenta encontrar numa terra de gente perdida que nem sabe que o está. Assim sim, era isto que queria dizer.

Roleta Russa. Dados. Ases de Espadas. 3, 2, 1.... e dá um murro em si mesmo. 4, 5, 6 dá a última passa neste enorme charro que é a vida. 7, 8, 9... 10 estou a encontrar-me no meio dos olhos gazeados do cowboy escritor...